Enquanto a ciência avançava trazendo à espécie humana a esperança no desconhecido, a filosofia moderna e contemporânea – em geral – transformou o mundo do ser humano num ambiente limitado, antropocêntrico e separado do universo, redutor na sua essência, e tornou o Homem num ser tão descartável como tudo o que tem um valor exclusivamente material.
Personagens como Josef Mengele, por exemplo, não são tanto um produto da ciência como são dessa filosofia do fim do milénio que se proclamava como detentora da verdade acerca da essência material do Homem – coisa que a ciência nunca se atreveu a proclamar porque não o podia fazer segundo a sua própria lógica; a ciência pura só afirma o que pode provar através da análise e extrapolação analítica decorrente dos “Fenómenos” (experimentalismo), e mesmo assim, com as reservas que a probabilística veio introduzir depois da morte do determinismo científico (Einstein, Heisenberg).
O fenómeno da redução do Homem a um mecanismo que reflectia a “causa” da vida como derivada do puro “acaso” (1), que Dawkins defende hoje em nome de uma “ciência” que se confunde com o materialismo filosófico, começou com um paranóico que era mais um romancista do que um filósofo: Nietzsche. Juntaram-se a ele os “Utilitários” (Bentham, James Mill, Stuart Mill), que transformaram as minorias sociais e os seres humanos mais fracos em “danos colaterais”, e descreveram o hedonismo como o “único bem” do ser humano.
Karl Marx (a arrogância do “Fim da História”), Gramsci, Lukacs (a necessidade da morte do espírito humano para o triunfo da revolução marxista), Marcuse e Adorno (“Teoria Crítica” e “Utopia Negativa”), Russell (Ética do Desejo), Heidegger (o ser humano definido como sendo uma “defecação” de uma “existência anónima”), Hayek (do cepticismo de Hume à Cultura como sendo “um conjunto de meras tradições” e passível de transformação através de engenharias sociais coercivas), Sartre (o “absurdo” como única realidade existencial) e Michel Foucault (o filósofo-pedófilo, e como tal assumido publicamente pelo próprio) compõem o ramalhete do materialismo filosófico. Da filosofia do século 20, salvam-se Wittgenstein e porventura alguns fenomenologistas, como Husserl e Scheler, e pouco mais.
O cenário é deprimente.
“Se não conhecemos a substância das coisas materiais, mas somente a sua aparência fenoménica, que esperança podemos ter de atingir um dia, a partir de indícios materiais, isto é, letras impressas numa folha de papel, a substância da filosofia de Immanuel Kant?” – Olavo de Carvalho, sobre a “coisa em si” de Kant (via)
“O saber da ciência já destruiu a “coisa em si” mesmo antes da bomba atómica” – Heidegger (escritos de 1958)
Paradoxalmente porque vindo de pessoas tão diferentes, estas duas citações significam exactamente a mesma “coisa em si” – e no entanto, foram ambas escritas em folhas de papel.
O conceito kantiano de “coisa em si”, ou de “númeno” (que significa o mesmo) fundamenta-se na teoria racionalmente irrefutável de Kant sobre o limite perene do conhecimento, inerente ao ser humano (2), que a ciência reconhece todos os dias e que o materialismo filosófico, na sua substância e na sua teleologia, não reconhece e não assimila, na medida em que o seu reconhecimento se traduziria imediatamente num niilismo existencial.
A substância da filosofia numénica de Kant é eminentemente apodíctica e, por isso, não carece de provas ou indícios materiais. É espantoso como Olavo de Carvalho parece não ter compreendido isto, porque de Heidegger penso que não o quis compreender por razões óbvias.
A “coisa em si”, ou “númeno”, traduz a realidade conceptual apodíctica, isto é, os conceitos que não sendo passíveis de comprovação empírica, não deixam de existir porque podem ser pensados de forma racional.
“É a matemática que nos dá a chave para abrirmos as portas secretas da natureza. Este conceito não é facilmente apreensível por todos, mas para aqueles que se expressam na linguagem matemática, a beleza matemática é uma qualidade evidente e reconhecida. Em suma, a matemática desponta da livre exploração racional da mente humana, o que parece indicar que as nossas mentes estão de tal modo sintonizadas com a estrutura do Universo que são capazes de penetrar nos seus segredos mais profundos.” - John Polkinghorne, físico de partículas de Cambridge (in “Beyond Science”)
Seria aconselhável que Olavo de Carvalho estudasse matemática para que possa compreender que existem “coisas em si” que são impossíveis – pelo menos no nosso estágio de evolução científica, e porventura sempre – de traduzir em indícios materiais, embora possam ser expressas em folhas de papel. Dizer que a filosofia de Kant faz parte da “paralaxe cognitiva” (segundo teoria de OC), é incluir a física quântica, ou a matemática, na mesma categoria de incongruência cognitiva que OC atribui ao númeno kantiano.
(1) O “acaso” não pode estar na “causa” de alguma coisa – sendo o “acaso” a imponderabilidade e a imprevisibilidade inerente ao caos – porque se assim fosse, não existiria uma causa potencialmente cognoscível e passível de ser analisada pela ciência. A “coisa em si”, segundo Kant, não é acásica e/ou subjectiva, mas é racional. A “paralaxe cognitiva” de OC aplica-se – aqui sim – à teoria de Dawkins, que é contraditória nos seus princípios racionais e filosóficos: o “acaso” presente na origem do universo (segundo Dawkins) e o método científico racional contradizem-se intrinsecamente. O “caos acásico” não é passível de categorização sistemática e, por conseguinte, de análise científica, e nem sequer pode entrar no conceito kantiano de “coisa em si”, porque o caos não pode ser definido e pensado racionalmente. O Caos é, neste sentido, a antítese da Razão, e por isso, a teoria de Dawkins é contraditória com os princípios científicos que ele próprio diz defender. Naturalmente que este raciocínio escapa ao cidadão incauto que quer acreditar na nova religião de Dawkins.
(2) Em toda a sua obra, Kant fez um esforço considerável para distanciar o conceito de “númeno” do conceito de Deus ou/e de algo ou tudo o que deriva de Deus, ou que com Ele se relacione. Na “Dialéctica Transcendental”, Kant critica mesmo, sob o ponto de vista da lógica argumentativa, a prova físico-teológica do teísmo (que admite um Deus vivo com atributos determinados por uma teologia natural) e o deísmo – que admite apenas um ser originário ou uma causa suprema. É esta imparcialidade racionalista (passo a redundância) de Kant que incomoda não só os materialistas filosóficos como os espiritualistas dogmáticos, e que faz dele um espírito livre.
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