O chamado “Acordo Ortográfico” é o resultado de um século de litigância político-cultural de tipo “guerra-fria” movida pelo Brasil contra Portugal por via de um complexo de colonizado que mantém até hoje, e que não desaparecerá, obviamente, com este Acordo.
O simples facto de o Brasil aceitar sentar-se a uma mesa com Portugal para um Acordo Ortográfico que nunca tinha aceite antes, é o seu reconhecimento de uma derrota política, tendo em conta que o Português Europeu já não é só adoptado em Portugal mas também em todos os restantes países de expressão lusófona. Mas mesmo admitindo tacitamente a derrota na sua birra política, o Brasil não deixa de querer impor-nos o seu figurino ortográfico, numa patética necessidade de auto-afirmação, cedendo apenas em aspectos simbólicos para que não se diga que não cedeu em nada.
Se o Português Europeu continuasse confinado a Portugal, isto é, se não existissem novos países de expressão lusófona, o Brasil nunca aceitaria um Acordo Ortográfico coisa nenhuma, mas tentaria antes impor a sua “originalidade” linguística sem procurar acordo, simplesmente porque nunca reconheceu autoridade à cultura portuguesa para negociar o que quer que fosse em matéria da língua que nasceu em Portugal.
Esta é a verdade sobre a idiossincrasia brasileira que é muito difícil de explicar racionalmente. Se Portugal tivesse tido a preocupação de fazer com o Brasil o que os espanhóis fizeram no resto da América do Sul, dividindo o território brasileiro que tinha em seu poder em vários países independentes, não teríamos este e outros problemas: o político brasileiro, em geral, será sempre um eterno mal-agradecido, que procura sempre valorizar, não aquilo que herdou de positivo e o que tem, mas aquilo que não tem. Talvez por isso, um país com aquela portentosa dimensão e enorme potencial tenha uma imensa dificuldade em sair da mediocridade.
Também é verdade que, para um país com cerca de 170 milhões de habitantes, a produção literária brasileira, em termos relativos – repito: em termos proporcionais às respectivas populações –, é e sempre foi inferior à portuguesa (não falo aqui de tiragem por edição; falo de produção literária; alguém viu por aí um Nobel da literatura brasileiro?), e o facto de Portugal ter mais produção literária “per capita” tem tudo a ver com as características da escrita da língua e com a forma como as palavras (e as frases) são sintáctica e morfologicamente constituídas, na poesia como na prosa. O português de Portugal é mais “literário”. Esta é uma verdade insofismável.
O problema deste Acordo é que não se trata só de uma alteração da grafia: é o primeiro passo da alienação de um património cultural colectivo; outros passos políticos se seguirão. Já é tempo da Esquerda portuguesa se despojar do “complexo de colonizador” e passar a defender os interesses da cultura portuguesa.
A divergência ortográfica foi, para além dos aspectos puramente políticos – acima referidos, inerentes a um nacionalismo exacerbado mesclado com um complexo de colonizado –, foi uma forma que o Brasil encontrou para blindar as influências culturais e literárias portuguesas nesse país em princípios e meados do século 20, isto é, o Brasil adoptou um proteccionismo cultural através da divergência ortográfica para defender a sua própria produção literária (e cultural em geral) – e quem tem que pagar agora o preço desse proteccionismo cultural brasileiro de um século, somos nós: portugueses, angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos, guineenses, goeses, são-tomenses, timorenses, e mesmo em Macau. Todo este sacrifício por um país onde menos de 1% da população sabe que Timor existe no mapa-múndi.
A aceitação deste Acordo Ortográfico por parte de Portugal, tal como ele está elaborado e segundo os critérios impostos politicamente, significa a abertura de uma caixa-de-pandora que vai, a médio/longo prazo, acabar com a língua portuguesa internacional, na exacta medida em que, daqui a poucos anos, os angolanos se sentirão com a mesma autoridade moral dos brasileiros para divergir na ortografia e para impor uma renegociação da escrita da língua (não me refiro aqui aos neologismos, que é coisa diferente), os moçambicanos não vão querer ficar atrás dos angolanos e irão querer impor normas próprias, e por aí afora, e iremos ter uma manta de retalhos que será tudo menos uma língua comum.
Ao contrário do que os defensores portugueses do Acordo pretendem, este Acordo Ortográfico, aceite nestes princípios e pressupostos, será o princípio do fim do português internacional, ou, em vez de “português”, assinaremos no futuro vários acordos ortográficos até passarmos todos a escrever uma espécie de crioulo, ou um “pretoguês” comercial e político, mas com pouco valor literário, e portanto, com pouco valor cultural e civilizacional. Este Acordo, que é uma reforma anti-natura imposta de fora, atribui à Língua Portuguesa o princípio do estatuto de uma simples língua franca, destituída de valor intrínseco, como aconteceu com o Aramaico na Palestina de Jesus Cristo, ou com o Latim utilizado de forma incipiente pelos bárbaros na Península Ibérica durante a ocupação romana.
Por princípio, eu não sou contra a alteração da escrita da língua; sou contra decisões políticas tomadas ignorando – ou contra – a opinião dos especialistas. Em nome de uma pretensa legitimidade plenipotenciária da “decisão política”, aos políticos tudo lhes é permitido. Os portugueses têm pago muito caro algumas decisões políticas erradas tomadas – depois do 25 de Abril de 1974, mas principalmente com José Sócrates – ao arrepio dos reais interesses dos portugueses, por gente da política com a arrogância suficiente para dispensar a mais elementar e inteligente necessidade de aconselhamento especializado. A questão do aeroporto na Ota, que os técnicos disseram que ficava melhor em Alcochete, ilustra bem o que quero dizer.
Para que tenhamos uma pequena noção da irresponsabilidade da ratificação deste Acordo Ortográfico, ele foi aceite por um primeiro-ministro que não frequentou o Liceu (Cavaco Silva) e que, portanto, estudou muito menos a Língua Portuguesa do que se o tivesse frequentado, que tinha um Secretário-de-estado da Cultura – que assinou o Acordo – que afirmou publicamente que Chopin compôs música para violino (Pedro Santana Lopes), o que dá uma ideia da cultura do político, e é defendido hoje por um primeiro-ministro (José Sócrates) que tirou um curso de engenharia “à pressão” numa universidade privada, com exames intercalares feitos por correspondência, e com exames finais de curso realizados num domingo e corrigidos por um só professor em quase todas as cadeiras examinadas. São estes os “bons exemplos” que temos de defesa da nossa língua e da nossa cultura.
Precisamos de “meter” os nossos linguistas “ao barulho”; queremos opinião técnica e especializada sobre esta matéria. É só isto o que peço se for necessário mudar de língua; eu, e a esmagadora maioria dos portugueses. Será pedir muito?