Passo a citar Cassirer, interpolando algumas imagens:
«Do ponto de vista do pensamento primitivo, torna-se desastrosa a mínima alteração do estável esquema das coisas. As palavras de uma fórmula mágica, de um conjunto ou exorcismo, as fases de um acto religioso, um sacrifício ou uma oração, têm de ser repetidas na mesma invariável ordem.
Qualquer modificação destruiria a força e a eficácia da palavra mágica ou do rito religioso. Portanto, a religião primitiva não pode conceder ao indivíduo qualquer liberdade. Prescreve as suas regras fixas, rígidas e invioláveis, não só para toda a acção humana, mas também para todo sentimento.
A via do homem encontra-se sob uma pressão constante. Acha-se confinada ao círculo apertado de exigências positivas e negativas, de consagrações e proibições, de observâncias e tabus.
Não obstante, a história das religiões ensina-nos que esta primitiva forma do pensamento religioso de modo algum exprime o seu sentido real e o seu fim. Também aqui se nos depara um avanço contínuo na direcção oposta. O vínculo com que o pensamento mítico e religioso primitivo submetia a vida humana vai afrouxando gradualmente e parece, por último, ter perdido a sua fora vinculatória.
Surge uma nova forma de religião, mais dinâmica e que abre uma nova perspectiva da vida moral e religiosa.
Em tal religião dinâmica, os poderes individuais adquiriram preponderância sobre os meros poderes estabilizadores.
A vida religiosa alcançou a sua maturidade e a sua liberdade; rompeu a conjura de um tradicionalismo rígido.»
— Ernst Cassirer, Antropologia Filosófica, 1963, pág. 49
Durante o século XIX e grande parte do século XX, o progresso era visto pelas elites como uma lei da natureza. Nós hoje sabemos que as coisas não são assim. Talvez a única área em que há progresso é na ciência — não porque um ser humano possa abarcar todo o conhecimento, mas porque o conhecimento é catalogado e arquivado para ser consultado no presente e no futuro.
Podemos verificar que a descrição de Cassirer de religião e mito "primitivos" encaixa no fenómeno social moderno das religiões políticas. A ideia de Cassirer segundo a qual o ser humano moderno participa de uma religiosidade mais “evoluída” do que a “primitiva”, e que a moderna cultura eliminou os “tabus primitivos” — essa ideia é um mito primitivo moderno. Como escreveu o filósofo Leszek Kolakowski, “a cultura consiste num cânone de tabus ou, dito de outra maneira, uma cultura sem tabus é um círculo quadrado”; ou seja, a não ser que a sociedade e a cultura sejam destruídas, haverá sempre tabus: o que devemos saber avaliar é a qualidade e o valor desses tabus, seja nas sociedades "primitivas", seja nas sociedades "modernas".
Naturalmente que se se mantém válido o princípio segundo o qual as culturas não são todas iguais. O que se constata hoje é que a ciência não conseguiu resgatar o Homem, por um lado, e por outro lado, fica-nos a dúvida sobre se o mito moderno é mais evoluído do que o “mito primitivo” de Cassirer. Ou seja, depois de um optimismo exagerado nos séculos XIX e XX, parece que a ciência e a técnica não foram capazes de modificar os fundamentos da natureza humana, mesmo depois das lobotomias colectivas massivas do comunismo e do nazismo, e dos novos totalitarismos que se anunciam.
Portanto, aquilo a que chamamos “progresso” é uma ilusão. Pode existir — e há! — progresso a nível individual, mas como o próprio Cassirer escreveu, a diferenciação individual não é transmissível geneticamente:
“Toda a perfeição alcançada por um organismo no decurso da sua vida individual se acha confinado à sua própria existência e em nada influi na vida da espécie.” — ibidem
A ilusão de "progresso" está na mudança da sociedade enquanto Todo. Pelo facto de as sociedades mudarem, de aparecerem e desaparecerem culturas e civilizações, pensamos que existe um "fôrma" e/ou um "fórmula" da História — um Eidos histórico —, e que esse Eidos é a reificação do progresso como lei da natureza aplicada ao conceito de humanidade.
A existir verdadeiramente progresso, este é sempre uma escolha ética do mal menor, na medida em que é impossível erradicar o mal. Uma sociedade que tentou optar pelo menor mal possível, ponderadas as situações do homem enquanto indivíduo e enquanto colectivo, em que toda a realidade — e não apenas a científica — foi colocada na equação do Homem enquanto ser do universo — e não apenas “cidadão do mundo” —, então essa sociedade terá sido a mais evoluída independentemente da sua situação e existência no espaço-tempo, dentro ou fora da História.
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