quarta-feira, 17 de setembro de 2008

O epifenomenalismo e a douta sapiência de António Damásio


René Descartes

Sobre este postal sobre Descartes, um leitor questionou-me sobre qual seria a minha opinião sobre o livro “O Erro de Descartes” de António Damásio. Para quem não leu o livro, pode ver uma súmula aqui. Desde já digo que em vez da “douta sapiência” de António Damásio, prefiro a “douta ignorância” de Nicolau de Cusa ― e este viveu no século 15.

Para que se possa compreender a falácia de Damásio, vou fazer aqui um paralelismo ideológico muito simples. Se um aparelho de rádio tiver um transístor (ou um chip) com problemas de funcionamento, a recepção radiofónica sofre em termos de qualidade. À medida em que a condição do transístor se degrada, a qualidade do som do rádio acompanha essa degradação. Se o problema desse transístor estragado se propagar a outros transístores do mesmo rádio, o som deste torna-se de tal forma distorcido que aparece como ininteligível. É neste momento que Damásio diz que o som “produzido” pelo rádio é afectado pela qualidade dos transístores do aparelho; para Damásio, é o rádio que produz o som, e não é a emissora de rádio que transmite a causa do som (ondas de rádio). Damásio esquece-se propositadamente que o rádio é o receptor e o meio (médium) de retransmissão dos sons da emissora. A verdade é que o rádio não “produz” som nenhum: apenas reproduz, transformando as ondas de rádio no som que ouvimos e que foi originariamente emitido pela emissora de rádio. Em suma, Damásio parte do princípio de que não existe nenhuma emissora de rádio, e que a caixinha mágica com uns transístores lá dentro faz o trabalho todo.



Num tempo em que a Física e a filosofia quânticas já puseram em questão o epifenomenalismo de Huxley, é lamentável que Damásio tenha escrito um livro de que se terá já arrependido de ter escrito. É espantoso que Damásio tenha recebido o prémio Pessoa 95 por causa deste livro e que, por exemplo, o Mia Couto continue à espera dos prémios que merece e que nunca a política portuguesa se dignou conceder-lhe, e o “De Profundis, Valsa Lenta” de Cardoso Pires tenha sido pouco divulgado e tão mal compreendido.

Depois, como podemos ver neste excelente ensaio da Maria de Jesus Fonseca (que peca apenas por não ser mais estruturado e mais conciso, por forma a facilitar a sua compreensão), Damásio não só não trata de Descartes como não trata de filosofia; a utilização do nome de Descartes vem a um despropósito total. O cientificista Damásio parte da neurobiologia (ciência) para dizer que Descartes (filósofo) errou, isto é, incorreu no mesmo erro de Thomas Huxley (acerca deste tema, ler as intervenções actualíssimas do filósofo Alvin Plantinga).
A ciência ainda não conseguiu explicar como é que crianças com 2 e 3 anos falam línguas que os próprios pais não entendem ― existem relatos científicos (que a própria ciência oficial ostensivamente ignora) de crianças de tenra idade (2 a 3 anos) que falam correntemente línguas estrangeiras sem nunca as terem aprendido; os meninos-prodígio ainda não tem uma explicação científica cabal; e Damásio vem dizer que Descartes errou! A filosofia quântica, baseando-se na Física quântica, tem já uma explicação incipiente para estes fenómenos (a ondulação quântica), mas a verdade está ainda muito longe de ser escrutinada.

Voltando à metáfora do rádio, o nosso cérebro é um “meio” da expressão da razão, isto é, a biologia e a genética são essenciais para que a razão se expresse utilizando o nosso cérebro, mas da mesma forma que o receptor de rádio não produz as ondas de rádio, o nosso cérebro não produz a razão, porque a existência da razão no universo não depende do Homem. A expressão racional do Homem (segue-se metáfora) é “o som do rádio” que é reconvertido a partir das ondas de rádio e retransmitido, e por isso a qualidade do aparelho de rádio é essencial para a fidelidade da música que o receptor reproduz.
A racionalidade humana não é a causa da razão. O que o nosso cérebro pode fazer é reproduzir a razão universal com mais ou menos qualidade, dependendo da especificidade e características do cérebro em questão; mas se um cérebro for incapaz de retransmitir a razão, isso não significa que a ideia da razão não exista. Seria como dizermos que o som de uma árvore que cai na floresta não existe só porque não há nenhum homem no local para ouvir o som da árvore que cai.

Por último, Damásio confunde “Razão” e “Ideia”, com “Cultura adquirida” pelo Homem vivendo em sociedade; embora a cultura e a tradição estejam ligadas à razão, esta não precisa daquelas para existir. A ordem racional do universo existe independentemente do Homem existir ou não; porém, o antropocentrismo de Damásio (característica dos detentores de alvarás de inteligência emitidos pelo novo clero cientificista) não permite que a razão exista independentemente do cérebro dele.

Postal publicado no Perspectivas.




1 comentário:

  1. Deste texto, ressalto algo cuja interrogação já fiz por várias vezes...

    "Num tempo em que a Física e a filosofia quânticas já puseram em questão o epifenomenalismo de Huxley, é lamentável que Damásio tenha escrito um livro de que se terá já arrependido de ter escrito. É espantoso que Damásio tenha recebido o prémio Pessoa 95 por causa deste livro e que, por exemplo, o Mia Couto continue à espera dos prémios que merece e que nunca a política portuguesa se dignou conceder-lhe, e o "De Profundis, Valsa Lenta" de Cardoso Pires tenha sido pouco divulgado e tão mal compreendido.

    Se calhar até tem uma explicação lógica, não é?

    Um beijo e continuação de boa semana ;)

    ResponderEliminar