O Deus de Descartes (1)
Considero Descartes ― a par com Leibniz e Kant ― uma das mentes mais brilhantes da filosofia post-cristã, contando todos os filósofos do século 19 e 20 (talvez possamos também incluir Wittgenstein no rol).
Bertrand Russell escreveu sobre Descartes:
“René Descartes (1596 - 1650) é considerado o fundador da filosofia moderna, e penso que com razão.” ― (História da Filosofia Moderna).
Naturalmente que Russell, como ateu inveterado, referia-se ao Discurso do Método, mas “esqueceu-se” de referir que Descartes ligou a ciência à metafisica, tal qual o fazem hoje os filósofos quânticos ― mas Descartes não o fez por simples influência da Escolástica, como pretendem fazer crer os doutos ― detentores de alvarás de inteligência ― da filosofia exclusivista do naturalismo contemporâneo. Fê-lo porque a própria lógica da filosofia de Descartes o exigiu, através de uma necessidade intrínseca do próprio Discurso do Método e do conceito de “Cogito”.
Simplesmente não é possível falar em “ideias” e “pensamento” e aplicar estes conceitos exclusivamente à ciência indutiva e empirista. Descartes parte do “penso, logo existo” que aplicou ao Discurso do Método para elaborar a sua metafísica, isto é, parte de um mesmo princípio para fundamentar o seu conceito de ciência e de metafísica transcendental.
Descartes é genial porque é simples; ele não complica: constata (evidência), analisa (análise), sintetiza (síntese) e enumera (enumeração), utilizando assim as bases do Método. Assim como um pintor genial faz uma meia dúzia de traços e transmite uma ideia, Descartes utiliza o “ovo de Colombo” da simplicidade de raciocínio para transmitir a complexidade ideológica da realidade, atributo este que só aos génios é possível.
Descartes dividiu as nossas “ideias” em três categorias: inatas, adventícias e factícias. As ideias inatas são as que nascem connosco e que nos fazem diferentes uns dos outros desde que nascemos. As ideias inatas de Mozart tornaram possível que ele escrevesse as suas primeiras obras musicais aos 3 anos de idade, mas minhas ideias inatas não me permitiram tal façanha. Portanto, segundo Descartes, as pessoas nascem diferentes na medida em que têm ideias inatas diferentes.
Naturalmente que a absoluta lógica deste conceito contraria a teoria da “tábua-rasa” (inerente ao ser humano) dos estóicos e dos materialistas em geral. Os darwinistas eliminaram habilidosamente o conceito de “tábua-rasa” e substituíram-no pelo “epifenomenalismo” de Huxley. Existe aqui um jogo do “gato e do rato”: à medida que a ciência vai avançando e colocando em causa o monismo naturalista, os naturalistas vão inventando novos obstáculos, fazendo de conta que os obstáculos já eliminados pela evidência dedutiva científica e matemática nunca existiram. Aconteceu exactamente isto com o determinismo científico que foi colocado em causa pela ciência através do princípio da incerteza de Heisenberg: logo a seguir, Karl Popper, preocupadíssimo com o avanço da Física quântica e da matemática em direcção à demonstração metafísica, cria um novo regulamento dogmatizante em relação à ciência: a teoria da falsibilidade (os antolhos de Popper).
As ideias inatas têm certamente uma componente de influência genética, mas a genética não explica tudo.
As ideias adventícias são as que nos parecem estranhas ou vindas do exterior. Se calha, as ideias deste postal são adventícias para o(a) leitor(a). As ideias adventícias compreendem também as ideias das coisas naturais.
As ideias factícias são as que são formadas ― ou elaboradas ― por nós próprios; por exemplo, as ideias que são fruto da nossa imaginação.
Ora todas as ideias (sejam elas inatas, adventícias e factícias) são iguais (ou são equivalentes, conforme o caso) se as considerarmos do
ponto de vista subjectivo.
Sob o ponto de vista subjectivo, o conjunto das minhas ideias é equivalente ao conjunto das ideias do(a) leitor(a), por um lado, e são iguais entre elas ― as minhas ideias! ― quando analisadas subjectivamente (isto é, as minhas ideias inatas, adventícias e factícias são subjectivamente iguais), por outro. Sob o ponto de vista subjectivo, as ideias são simples actos mentais, e por isso têm ― em princípio ― equivalência entre as ideias de todos os seres humanos, e são iguais entre si, no que respeita à classificação supracitada, quando aplicadas a um mesmo sujeito.
Sob o ponto de vista subjectivo, ninguém pode dizer com toda a segurança que as ideias de um ser humano com síndroma de Down não são equivalentes (não iguais, mas equivalentes) às ideias de Albert Einstein, assim como ninguém pode dizer que um quilo de algodão não seja equivalente a um quilo de chumbo.
Porém,
sob o ponto de vista objectivo ― isto é, quando as ideias são aplicadas a uma realidade objectiva ― as ideias são totalmente diferentes umas das outras, não só nas minhas três categorias de ideias entre si (inatas, adventícias e factícias ), como as minhas ideias em relação com as ideias do(a) leitor(a). Sob o ponto de vista objectivo,
as ideias representam “coisas” mas não são simples imagens das coisas que representam porque os princípios do Método Cartesiano se lhes aplica (análise e síntese).
Sendo que as ideias representam “coisas”, elas podem ser examinadas no sentido de se descobrir a “causa” que as produzem. Naturalmente que Huxley e Darwin inventaram o epifenomenalismo, que consiste na teoria de que as ideias e o pensamento são simples excrescências do cérebro ― e nada mais do que isso. A filosofia quântica, baseando-se na Física quântica, já refutou esta teoria.
Contudo, Descartes coloca uma questão pertinente: as ideias que representam as coisas naturais não contêm nada de excepcionalmente perfeito que não pudessem ser produzidas por um ser humano ― porque o ser humano e as coisas naturais encontram-se no mesmo plano da realidade objectiva. Porém, no que diz respeito à ideia de Deus ― absoluta, intemporal, criadora ― é difícil pensar que um ser humano a pudesse ter criado. A ideia de Deus é a única ideia na qual existe algo que não pode vir de um ser humano, na medida em que nenhum ser humano possui as perfeições que estão representadas nessa ideia. Descartes diz-nos que a
causa de uma ideia deve ter (pelo menos) tanta perfeição quanto a perfeição que a ideia representa, e por isso, a
causa da ideia de uma entidade com as características de Deus só pode vir de Deus, assim como a
causa da ideia de uma substância infinita só pode ser uma substância infinita.
E conclui Descartes: a simples presença em nós da ideia de Deus ― mesmo que essa ideia nos repugne até à náusea ― demonstra a existência de Deus.
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Perspectivas
ora aí está um blog e um post muito interessantes! Como sou leigo na matéria, como enquadrar o "erro de Descartes" de António Damásio? Cumprimentos
ResponderEliminar"O erro de Damásio" parte de pressupostos errados que atribui a Descartes. Aliás, escrevi aqui: "As ideias inatas têm certamente uma componente de influência genética, mas a genética não explica tudo.".
ResponderEliminarSobre "O erro de Damásio" escreverei.
Resposta ao "sátiro" aqui.
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