sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Juntando Telésio a Berkeley

A Verdade existe emparcelada em cada um de nós ― não que um só Homem possua a Verdade, mas que todos os Homens juntos estão próximos da Verdade, que não é relativa: nós é que relativizamos a Verdade porque a percepcionamos a partir da nossa própria perspectiva emparcelada.

A visão global da Verdade só pode ser percebida através do concurso da humanidade inteira ― e todos os Homens serão poucos para que a Verdade holística transpareça.

O relativismo como monismo e essência religiosa

O cepticismo de Hume aponta para a probabilística ― não uma probabilística científica baseada na supremacia da razão sobre o instinto, mas uma probabilística que existe inerente à submissão da razão pelo instinto. Para David Hume, a razão é uma espécie de instinto, e assim sendo, nada é racional e verdadeiramente certo. O conhecimento humano (incluindo a ciência) não pode ter certezas, apenas a certeza da probabilidade do conhecimento, induzido ou deduzido.
Neste sentido, Hume está nos antípodas do Naturalismo ateísta como monismo religioso que é. O cepticismo de Hume põe em causa o próprio Naturalismo ateísta.
Os herdeiros ideológicos do relativismo de Hume foram os seguidores do Pragmatismo (Charles Peirce, Hans Vaihinger, Miguel de Unamuno) e do Neo-Pragmatismo (Richard Rorty).

O relativismo de Hume é a sua própria “Quinta-Essência” ― é o próprio relativismo que se transforma num objecto religioso. O livre-arbítrio no ser humano, isto é, a possibilidade de livre escolha racional, incomoda David Hume; neste sentido, Hume é um existencialista quando reduz a essência da razão ao próprio instinto que limita a liberdade humana ― ao contrário de Descartes e de Kant, que defenderam a natureza dualista do Homem (a razão e o instinto como características diferenciadas no Homem) e a sua liberdade essencial.

Se David Hume vivesse hoje, estaria nas parangonas dos me®dia.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Utilizar Richard Dawkins para defender a bondade da religião, é um absurdo

Não é a primeira vez que o Marco utiliza frases soltas do livro “A Desilusão de Deus”, de Richard Dawkins, para ilustrar um argumento de um postal seu. Neste caso, o Marco refere-se a uma determinada passagem do referido livro, da página 246:

“As religiões são organizadas por pessoas: por padres e bispos, rabinos, imãs e aiatolas. Mas, repetindo o que disse a respeito de Martinho Lutero, tal não quer dizer que elas resultaram da concepção ou do desígnio de pessoas concretas.”


Contudo, Dawkins acrescenta logo a seguir:

“Mesmo nos casos em que as religiões foram exploradas e manipuladas em beneficio de indivíduos poderosos, continua a ser forte a possibilidade de a forma pormenorizada de cada religião haver sido, em grande parte, modelada por uma evolução inconsciente.”


Vejam bem: Dawkins escreve “possibilidade”; existe uma “forte possibilidade”. Vejam como se constrói uma teoria que, presumivelmente, tem uma base científica ― com todas as certezas que a ciência transmite para o mainstream cultural ― falando em “possibilidade”. Dawkins é demasiado fraco para ser lido, quanto mais citado! O seu livro é um conjunto desconexo de vacuidades.

Contudo, agora descobri a razão da fixação do Marco em Dawkins: a teoria desconexa do ateu parece servir para a valorização da fé Bahai sobre as outras religiões, porque a religião Bahai foi a última a aparecer, e portanto, terá sido fruto de uma evolução ― “não pela evolução natural genética”, mas pela evolução dos “memes” de Dawkins. Parece-me que o Marco se serve de uma teoria materialista e ateísta para proclamar a superioridade da religião Bahai. Fraca a fé, caro Marco; fraca a fé!




Eu não conheço a religião Bahai para poder dizer o que seja sobre ela.
Conheço bem o Budismo, tanto o Hinayana como o Mahayana. Conheço bem o Cristianismo dos Evangelhos ― que é diferente do Luteranismo, do Catolicismo, do Calvinismo e de outras evoluções do catolicismo cristão primordial. Conheço o Islamismo, que por ter aparecido depois do Cristianismo, não é por isso uma evolução religiosa ― pelo contrário: com o Islamismo a religião voltou à Era Moiseísta ou mesmo a uma época anterior.

A fixação de Dawkins no evolucionismo darwinista tolda-lhe o discernimento na análise histórica; Dawkins vê a História como um processo linear de evolução da espécie humana e não lhe passa pela cabeça que o processo histórico não leva o Homem inexoravelmente ao caminho do aperfeiçoamento ideológico e intelectual. Esta visão perfeccionista do Homem ― em função da História ― vem de Hegel e da sua dialéctica, e foi bastamente explorada pela chamada “esquerda hegeliana” e por Feuerbach, sendo que esta linha de raciocínio filosófico deu origem ao materialismo dialéctico de Engels e Marx.

Conclusão: a visão histórica de Dawkins é um imenso desastre, um absurdo até. Portanto, qualquer referência a essa visão histórica passa a enfermar da mesma maleita.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

O epifenomenalismo e a douta sapiência de António Damásio


René Descartes

Sobre este postal sobre Descartes, um leitor questionou-me sobre qual seria a minha opinião sobre o livro “O Erro de Descartes” de António Damásio. Para quem não leu o livro, pode ver uma súmula aqui. Desde já digo que em vez da “douta sapiência” de António Damásio, prefiro a “douta ignorância” de Nicolau de Cusa ― e este viveu no século 15.

Para que se possa compreender a falácia de Damásio, vou fazer aqui um paralelismo ideológico muito simples. Se um aparelho de rádio tiver um transístor (ou um chip) com problemas de funcionamento, a recepção radiofónica sofre em termos de qualidade. À medida em que a condição do transístor se degrada, a qualidade do som do rádio acompanha essa degradação. Se o problema desse transístor estragado se propagar a outros transístores do mesmo rádio, o som deste torna-se de tal forma distorcido que aparece como ininteligível. É neste momento que Damásio diz que o som “produzido” pelo rádio é afectado pela qualidade dos transístores do aparelho; para Damásio, é o rádio que produz o som, e não é a emissora de rádio que transmite a causa do som (ondas de rádio). Damásio esquece-se propositadamente que o rádio é o receptor e o meio (médium) de retransmissão dos sons da emissora. A verdade é que o rádio não “produz” som nenhum: apenas reproduz, transformando as ondas de rádio no som que ouvimos e que foi originariamente emitido pela emissora de rádio. Em suma, Damásio parte do princípio de que não existe nenhuma emissora de rádio, e que a caixinha mágica com uns transístores lá dentro faz o trabalho todo.



Num tempo em que a Física e a filosofia quânticas já puseram em questão o epifenomenalismo de Huxley, é lamentável que Damásio tenha escrito um livro de que se terá já arrependido de ter escrito. É espantoso que Damásio tenha recebido o prémio Pessoa 95 por causa deste livro e que, por exemplo, o Mia Couto continue à espera dos prémios que merece e que nunca a política portuguesa se dignou conceder-lhe, e o “De Profundis, Valsa Lenta” de Cardoso Pires tenha sido pouco divulgado e tão mal compreendido.

Depois, como podemos ver neste excelente ensaio da Maria de Jesus Fonseca (que peca apenas por não ser mais estruturado e mais conciso, por forma a facilitar a sua compreensão), Damásio não só não trata de Descartes como não trata de filosofia; a utilização do nome de Descartes vem a um despropósito total. O cientificista Damásio parte da neurobiologia (ciência) para dizer que Descartes (filósofo) errou, isto é, incorreu no mesmo erro de Thomas Huxley (acerca deste tema, ler as intervenções actualíssimas do filósofo Alvin Plantinga).
A ciência ainda não conseguiu explicar como é que crianças com 2 e 3 anos falam línguas que os próprios pais não entendem ― existem relatos científicos (que a própria ciência oficial ostensivamente ignora) de crianças de tenra idade (2 a 3 anos) que falam correntemente línguas estrangeiras sem nunca as terem aprendido; os meninos-prodígio ainda não tem uma explicação científica cabal; e Damásio vem dizer que Descartes errou! A filosofia quântica, baseando-se na Física quântica, tem já uma explicação incipiente para estes fenómenos (a ondulação quântica), mas a verdade está ainda muito longe de ser escrutinada.

Voltando à metáfora do rádio, o nosso cérebro é um “meio” da expressão da razão, isto é, a biologia e a genética são essenciais para que a razão se expresse utilizando o nosso cérebro, mas da mesma forma que o receptor de rádio não produz as ondas de rádio, o nosso cérebro não produz a razão, porque a existência da razão no universo não depende do Homem. A expressão racional do Homem (segue-se metáfora) é “o som do rádio” que é reconvertido a partir das ondas de rádio e retransmitido, e por isso a qualidade do aparelho de rádio é essencial para a fidelidade da música que o receptor reproduz.
A racionalidade humana não é a causa da razão. O que o nosso cérebro pode fazer é reproduzir a razão universal com mais ou menos qualidade, dependendo da especificidade e características do cérebro em questão; mas se um cérebro for incapaz de retransmitir a razão, isso não significa que a ideia da razão não exista. Seria como dizermos que o som de uma árvore que cai na floresta não existe só porque não há nenhum homem no local para ouvir o som da árvore que cai.

Por último, Damásio confunde “Razão” e “Ideia”, com “Cultura adquirida” pelo Homem vivendo em sociedade; embora a cultura e a tradição estejam ligadas à razão, esta não precisa daquelas para existir. A ordem racional do universo existe independentemente do Homem existir ou não; porém, o antropocentrismo de Damásio (característica dos detentores de alvarás de inteligência emitidos pelo novo clero cientificista) não permite que a razão exista independentemente do cérebro dele.

Postal publicado no Perspectivas.




sexta-feira, 5 de setembro de 2008

O Deus de Descartes (1)



Considero Descartes ― a par com Leibniz e Kant ― uma das mentes mais brilhantes da filosofia post-cristã, contando todos os filósofos do século 19 e 20 (talvez possamos também incluir Wittgenstein no rol).

Bertrand Russell escreveu sobre Descartes:

“René Descartes (1596 - 1650) é considerado o fundador da filosofia moderna, e penso que com razão.” ― (História da Filosofia Moderna).


Naturalmente que Russell, como ateu inveterado, referia-se ao Discurso do Método, mas “esqueceu-se” de referir que Descartes ligou a ciência à metafisica, tal qual o fazem hoje os filósofos quânticos ― mas Descartes não o fez por simples influência da Escolástica, como pretendem fazer crer os doutos ― detentores de alvarás de inteligência ― da filosofia exclusivista do naturalismo contemporâneo. Fê-lo porque a própria lógica da filosofia de Descartes o exigiu, através de uma necessidade intrínseca do próprio Discurso do Método e do conceito de “Cogito”. Simplesmente não é possível falar em “ideias” e “pensamento” e aplicar estes conceitos exclusivamente à ciência indutiva e empirista. Descartes parte do “penso, logo existo” que aplicou ao Discurso do Método para elaborar a sua metafísica, isto é, parte de um mesmo princípio para fundamentar o seu conceito de ciência e de metafísica transcendental.

Descartes é genial porque é simples; ele não complica: constata (evidência), analisa (análise), sintetiza (síntese) e enumera (enumeração), utilizando assim as bases do Método. Assim como um pintor genial faz uma meia dúzia de traços e transmite uma ideia, Descartes utiliza o “ovo de Colombo” da simplicidade de raciocínio para transmitir a complexidade ideológica da realidade, atributo este que só aos génios é possível.

Descartes dividiu as nossas “ideias” em três categorias: inatas, adventícias e factícias.

As ideias inatas são as que nascem connosco e que nos fazem diferentes uns dos outros desde que nascemos. As ideias inatas de Mozart tornaram possível que ele escrevesse as suas primeiras obras musicais aos 3 anos de idade, mas minhas ideias inatas não me permitiram tal façanha. Portanto, segundo Descartes, as pessoas nascem diferentes na medida em que têm ideias inatas diferentes.




Naturalmente que a absoluta lógica deste conceito contraria a teoria da “tábua-rasa” (inerente ao ser humano) dos estóicos e dos materialistas em geral. Os darwinistas eliminaram habilidosamente o conceito de “tábua-rasa” e substituíram-no pelo “epifenomenalismo” de Huxley. Existe aqui um jogo do “gato e do rato”: à medida que a ciência vai avançando e colocando em causa o monismo naturalista, os naturalistas vão inventando novos obstáculos, fazendo de conta que os obstáculos já eliminados pela evidência dedutiva científica e matemática nunca existiram. Aconteceu exactamente isto com o determinismo científico que foi colocado em causa pela ciência através do princípio da incerteza de Heisenberg: logo a seguir, Karl Popper, preocupadíssimo com o avanço da Física quântica e da matemática em direcção à demonstração metafísica, cria um novo regulamento dogmatizante em relação à ciência: a teoria da falsibilidade (os antolhos de Popper).
As ideias inatas têm certamente uma componente de influência genética, mas a genética não explica tudo.





As ideias adventícias são as que nos parecem estranhas ou vindas do exterior. Se calha, as ideias deste postal são adventícias para o(a) leitor(a). As ideias adventícias compreendem também as ideias das coisas naturais.
As ideias factícias são as que são formadas ― ou elaboradas ― por nós próprios; por exemplo, as ideias que são fruto da nossa imaginação.

Ora todas as ideias (sejam elas inatas, adventícias e factícias) são iguais (ou são equivalentes, conforme o caso) se as considerarmos do ponto de vista subjectivo.

Sob o ponto de vista subjectivo, o conjunto das minhas ideias é equivalente ao conjunto das ideias do(a) leitor(a), por um lado, e são iguais entre elas ― as minhas ideias! ― quando analisadas subjectivamente (isto é, as minhas ideias inatas, adventícias e factícias são subjectivamente iguais), por outro. Sob o ponto de vista subjectivo, as ideias são simples actos mentais, e por isso têm ― em princípio ― equivalência entre as ideias de todos os seres humanos, e são iguais entre si, no que respeita à classificação supracitada, quando aplicadas a um mesmo sujeito.
Sob o ponto de vista subjectivo, ninguém pode dizer com toda a segurança que as ideias de um ser humano com síndroma de Down não são equivalentes (não iguais, mas equivalentes) às ideias de Albert Einstein, assim como ninguém pode dizer que um quilo de algodão não seja equivalente a um quilo de chumbo.

Porém, sob o ponto de vista objectivo ― isto é, quando as ideias são aplicadas a uma realidade objectiva ― as ideias são totalmente diferentes umas das outras, não só nas minhas três categorias de ideias entre si (inatas, adventícias e factícias ), como as minhas ideias em relação com as ideias do(a) leitor(a). Sob o ponto de vista objectivo, as ideias representam “coisas” mas não são simples imagens das coisas que representam porque os princípios do Método Cartesiano se lhes aplica (análise e síntese).

Sendo que as ideias representam “coisas”, elas podem ser examinadas no sentido de se descobrir a “causa” que as produzem. Naturalmente que Huxley e Darwin inventaram o epifenomenalismo, que consiste na teoria de que as ideias e o pensamento são simples excrescências do cérebro ― e nada mais do que isso. A filosofia quântica, baseando-se na Física quântica, já refutou esta teoria.

Contudo, Descartes coloca uma questão pertinente: as ideias que representam as coisas naturais não contêm nada de excepcionalmente perfeito que não pudessem ser produzidas por um ser humano ― porque o ser humano e as coisas naturais encontram-se no mesmo plano da realidade objectiva. Porém, no que diz respeito à ideia de Deus ― absoluta, intemporal, criadora ― é difícil pensar que um ser humano a pudesse ter criado. A ideia de Deus é a única ideia na qual existe algo que não pode vir de um ser humano, na medida em que nenhum ser humano possui as perfeições que estão representadas nessa ideia. Descartes diz-nos que a causa de uma ideia deve ter (pelo menos) tanta perfeição quanto a perfeição que a ideia representa, e por isso, a causa da ideia de uma entidade com as características de Deus só pode vir de Deus, assim como a causa da ideia de uma substância infinita só pode ser uma substância infinita.

E conclui Descartes: a simples presença em nós da ideia de Deus ― mesmo que essa ideia nos repugne até à náusea ― demonstra a existência de Deus.

Publicado em simultâneo no blogue Perspectivas